Um sobre Zero #59
O jornalismo encontrou um novo adversário e este poderá constituir uma verdadeira crise existencial.
Bem vindos a mais uma edição da newsletter Um sobre Zero.
Um apontamento de humor
Isto vindo do próprio CEO da OpenAI tem a sua piada:
Quem vai pagar o jornalismo?
É difícil acreditar que já houve um tempo em que havia órgãos de comunicação social (OCS) que decidiam processar o Google só porque este levava demasiado tráfego para os seus sites, por causa do facto da sua infraestrutura depois não aguentar o número de visitantes. Foi exatamente o que aconteceu na Bélgica em 2006, quando um tribunal ordenou mesmo o Google a eliminar os links para esses sites.
Naturalmente, estes sites depois perceberam rapidamente que isto era má ideia e começaram a explorar outras formas de ganhar dinheiro vindo do Google. E então começaram a propor que os motores de pesquisa deveriam pagar para poderem linkar para as notícias nos sites dos órgãos de comunicação social (OCS), alegando questões de copyright. Tendo em conta o tráfego que sites como o Google geravam para estes sites de notícias (permitindo-lhes ganhar dinheiro com publicidade), é difícil aceitar este argumento de copyright por parte dos OCS.
Quando depois os motores de pesquisa e as redes sociais começaram a modificar a forma como disponibilizavam os links para as notícias, mostrando na mesma o link mas agora colocando o título, a imagem e uma parte inicial do texto da notícia, os OCS voltaram à carga. Estes agora exigiam pagamentos pelas visitas que não eram realizadas pelos utilizadores dos motores de pesquisa e redes sociais, que não sentiam tanta necessidade de visitar os sites dos OCS porque a informação que tinham era suficiente.
Aqui o argumento já era mais forte, e é mais fácil respeitar a necessidade de se tentar encontrar uma solução para o problema. Mas ainda assim, não me parece evidente que os OCS podiam simplesmente exigir o que quisessem. Afinal de contas, os links com imagem e um pouco de texto não são suficientes para uma pessoa se manter informada, muito menos numa altura em que os OCS aprenderam a criar títulos que são autêntico click-baiting, para forçar as pessoas a visitar os sites dos OCS.
Mas agora estamos a entrar numa era em que a inteligência artificial generativa pode ajudar no processo de sumarização, análise e composição de conteúdos com base nas notícias disponibilizadas nos sites dos OCS e gerar resumos perfeitamente adequados e informativos, eliminando completamente a necessidade dos utilizadores visitarem os sites de notícias.
Ferramentas como o Bing Chat já são capazes de fazer referência às fontes de informação que usam para sumarizar a informação. Mas a verdade é que essas referências vão tornar-se cada vez mais obsoletas porque as pessoas deixam de sentir necessidade de visitar os sites dos OCS porque o conteúdo produzido pelas IAs vai ser satisfatório e suficiente. E aí, sim, começa a crise existencial para o jornalismo. Sem possibilidade de ganharem dinheiro com as visitas ao site e a publicidade que daí advém, os OCS terão de encontrar soluções alternativas.
Uma possibilidade é manter o mecanismo, que já muitos usam, de exigir subscrições individuais de clientes para acesso às notícias. Mas tal como estamos a ver que este não é um modelo sustentável para os clientes no mundo do streaming, em que nos vemos na situação complicada de ter de escolher entre um ou dois serviços de streaming dos imensos que há, também aqui será difícil para o comum dos mortais conseguir justificar o pagamento de diversos serviços de subscrição de notícias só para se manter informado.
Há também quem defenda um mecanismo de micro-pagamentos para ter acesso a conteúdos individuais dos sites dos OCS, conteúdos esses que não têm necessariamente de ser servidos nos respetivos sites dos OCS, mas sim através de apps e serviços que fazem essa ponte de agregação de conteúdos jornalísticos. Isto talvez seja uma alternativa válida, mas terão de resolver primeiro a questão dos micro-pagamentos. Sistemas de pagamentos são caros e, portanto, para uma app ou plataforma implementar um mecanismo de micro-pagamentos tem de criar o seu próprio ecossistema de pagamentos para evitar ter de pagar comissões exageradamente altas por cada transação realizada. E depois temos o modelo que existe por exemplo nas trotinetes elétricas, em que os clientes têm de “carregar” as suas carteiras dos vários serviços com dinheiro só para poderem fazer pequenos pagamentos quando for necessário. Também não é agradável para o cliente.
Os OCS terão de começar a cortar custos para tornarem o seu modelo sustentável. E a tentação de recorrer à inteligência artificial para reduzir as equipas que produzem as notícias é demasiado grande. Principalmente quando a qualidade deste modelos começa a subir de forma vertiginosa e a atingir níveis superiores a um estagiário.
O jornalismo é de facto uma área muito curiosa. Há muita procura (quase toda a gente sente realmente a necessidade de se manter informada), mas é muito difícil perceber como é que se pode monetizar este mercado, numa era em que a informação vem de tantos sítios diferentes: TVs, jornais, revistas, redes sociais, newsletters, etc. Mas muitas dessas fontes não são de confiança, há muita desinformação e muita pressa para ser o “primeiro” e não o “verdadeiro”. Os OCS terão de se destacar pelo rigor da informação que geram e têm de ser capazes de mostrar que esse rigor vale a pena ser pago.
Será que o próximo caso em tribunal será os OCS contra a inteligência artificial?
Notícias Várias
OpenAI lança o GPT-4
E poucas semanas depois de ter anunciado o acesso à API do ChatGPT (que usa o modelo gpt-3.5-turbo) a preços bem interessantes, eis que a OpenAI anuncia a nova versão do GPT. O GPT-4 é ligeiramente diferente dos seus antecessores, no sentido em que é um modelo multimodal. O que quer isto dizer? Quer dizer que já não está limitado a processar texto. Também é capaz de processar imagens e produzir conteúdo com base na análise dessas imagens. Um exemplo curioso que foi demonstrado na apresentação é a possibilidade de criar um site só a partir de um esboço desenhado num guardanapo.
Por enquanto, a versão Chat do GPT-4 só está disponível para quem subscreve o serviço GPT-Plus da OpenAI. E quem quiser acesso à API do GPT-4 tem também de entrar na lista de espera. Com estes patamares de utilização, a OpenAI está de facto a colocar-se muito bem no mercado:
Oferece o ChatGPT gratuito para criar massa crítica suficiente para nem deixar os concorrentes deixarem marca no mercado;
Cria um ecossistema gigante ao oferecer a API do ChatGPT a preços muito baixos, o que permite qualquer pequena empresa ou organização integrar estas capacidades do ChatGPT nos seus produtos;
Começa a fazer dinheiro efetivamente com o lançamento de versões mais avançadas que só estão acessíveis em subscrições ou a preços mais elevados.
A continuar neste caminho, o Sam Altman (CEO da OpenAI) é bem capaz de se tornar no primeiro trilionário.
Queres tweets? Dá cá 42 mil dólares/mês!
O Twitter anunciou que o acesso à sua API, que permite que investigadores e empresas possam aceder de forma estruturada ao conteúdo que é criado no Twitter, irá em breve ficar por trás de uma paywall, causando uma agitação na comunidade académica que depende deste conteúdo para trabalhos de investigação. O problema não está tanto na questão da API passar a ser paga, mas pelo facto de terem de pagar $42.000 por mês para terem acesso a 50 milhões de tweets!Isto basicamente representa meio milhão de dólares por ano para obter menos de 1% do conteúdo que é gerado na rede social. Isto é um duro golpe nas instituições que dependem deste tipo de conteúdo para fazerem investigação em áreas como Natural Language Processing. O fascínio de Elon Musk pelas referências a 42 ou 420 continuam. É quase como se ele quisesse passar uma mensagem de que pode fazer o que quer só porque é o homem mais rico do mundo.
“KITT amigão, vem-me buscar”
A General Motors está a pensar dar vida ao carro futurista falante do antigo Justiceiro, o conhecido Knight Rider, a série de TV dos anos 80 que contava com o KITT (um Pontiac Trans Am de 1982, equipado com uma Inteligência Artificial) e com o David Hasselhoff como o justiceiro que acabava sempre por salvar o dia com a ajuda do seu carro inteligente. Com o aparecimento de IAs como o ChatGPT, fica aberto o caminho para de certa forma trazer para a realidade esta possibilidade dos condutores terem conversas com os seus carros, e não apenas para pedir indicações ou ligar o rádio. Imaginem pedir ao vosso carro para arranjar um pneu furado, e ele responder com um vídeo instrutivo ou um guia passo-a-passo. No entanto, como eu já expliquei antes, estes modelos são conhecidos por produzirem factos falsos hilariantes, o que poderia constituir um problema para esta ambição de construir um “carro inteligente”. Seja como for, vai ser divertido vê-los a tentar construir isto.
Painéis solares a boiar
Um grupo de investigadores descobriu que os painéis solares colocados a boiar em reservatórios de água ou albufeiras de barragens têm o potencial de gerar quase 10.000 TeraWatt-horas por ano, ao mesmo tempo que ajudam a poupar efectivamente mais de 100 km3 de água da evaporação. Os painéis solares flutuantes não só limitarão a perda de água como também funcionarão mais eficientemente à medida que a água os arrefece. Contudo, nem tudo são rosas. Embora esta medida possa potencialmente limitar a proliferação de algas nocivas, há quem se preocupe com o impacto que estas abordagens poderão ter nos ecossistemas aquáticos nos locais onde os painéis seriam colocados, por causa da ausência de exposição a luz solar aos peixes. Mais testes são necessários, naturalmente, mas há aqui um grande potencial a explorar.
Samsung apanhada com a boca na botija
O Galaxy S21 Ultra da Samsung supostamente utiliza IA para melhorar as fotos tiradas pelos utilizadores desse dispositivo. E um dos exemplos de que a Samsung se orgulha, e tanto anunciou, é o de fotos da Lua com um zoom elevado (que tendem a ser fotos muito desfocadas e com pouca qualidade). Contudo, as imagens resultantes desse processo de melhoramento (ou como a Samsung chama, “ampliação de IA”), foram criticadas como sendo "falsas", de acordo com um utilizador do Reddit que realizou um teste sorrateiro. Criou de propósito uma imagem da lua completamente desfocada e impossível de obter o detalhe necessário (com 170 por 170 pixeis) e mesmo assim, o dispositivo produziu depois uma imagem límpida e detalhada da Lua. O que significa que este processo está a “inventar” detalhes… ou simplesmente a substituir a foto tirada por uma foto já existente no dispositivo.
WhatsApp não quer encriptação fraca
De forma algo dramática e jocosa, o chefe do WhatsApp, Will Cathcart gozou publicamente com a potencial Lei de Segurança Online que o Reino Unido planeia implementar, ao ameaçar retirar a aplicação do país se esta for obrigada a enfraquecer os seus padrões de encriptação. A legislação introduz novas regras que exigem que as empresas tecnológicas de comunicação utilizem "tecnologia acreditada" para serem capazes de interceptar mensagens com material de abuso de crianças. Contudo, o WhatsApp insiste em manter as suas normas de privacidade de encriptação de ponto a ponto, uma característica que é favoravelmente aceite e popular entre os 98% de utilizadores que residem fora do Reino Unido. Cathcart ridicularizou o projecto de lei e declarou que nunca viu um país democrático bloquear o WhatsApp, algo só visto apenas em regimes autoritários. Na mesma onda, o CEO da Signal, outra aplicação de messaging que funciona sob o mesmo princípio, avisou que a empresa iria “absolutamente” afastar-se do Reino Unido em vez de minar a confiança que as pessoas depositam na empresa para fornecer um meio de comunicação verdadeiramente privado. Eu compreendo que a luta contra o problema dos abusos das crianças e da pedofilia motive a criação deste de abordagens, mas esta não é de facto a solução. É bem sabido que a introdução de um sistema para monitorizar mensagens privadas pode facilmente ser usado (e abusado) para interferência governamental, algo que não se pretende numa democracia.
Recomendações de podcasts
Cautionary Tales - La La Land: Galileo’s Warning
Uma vez que este podcast re-publicou este episódio, aproveito para partilhar aquele que é um dos meus episódios preferidos do Cautionary Tales, por causa da forma como disseca os erros cometidos em situações completamente diferentes umas das outras mas que todas sofrem do mesmo problema: a criação de sistemas de proteção que acabam por causar mais problemas do que aqueles que visam prevenir.
Nota final
A OpenAI, bem simpática, já me deu acesso à API do GPT-4! O meu bot vai ficar ainda melhor 😁
Até à próxima!
António Lopes