Bem vindos a mais uma edição da newsletter Um sobre Zero.
Um apontamento de humor
IA e as profissões que afeta
Na última edição da newsletter eu acabei a secção de opinião com esta frase:
Quem diria que, de todas as profissões que a inteligência artificial poderia ameaçar, os artistas seriam os primeiros?
A frase em si, foi mais uma tentativa de ser engraçado e jogar com a temática de opinião dessa edição da newsletter - que tinha a ver com a suposta criatividade de uma inteligência artificial. Mas na verdade, eu não acredito nesta premissa. Se há atividade que eu acho que não será ameaçada - no sentido de desaparecer - pela cada vez mais ubíqua utilização da IA, é a criatividade artística.
Os artistas existem desde o início dos tempos. Aliás, a expressão artística surgiu antes da própria escrita. Quando os seres pré-históricos descobriram uma forma de produzir uma tinta que ficava marcada nas paredes das grutas, não pensaram na aplicação prática de desenvolver um mecanismo de linguagem escrita e como tal poderia ser usado como um registo histórico ou de comunicação entre eles. Foi usado antes como uma simples expressão artística daquilo que era a realidade deles: pinturas de animais e outros aspetos da vida na altura.
Aquilo que temos vindo a testemunhar ao longo da evolução humana, é que os artistas sempre foram muito resilientes e determinados em produzir a sua arte, mesmo quando as circunstâncias da época não eram favoráveis a tal. E ainda que o meio como produzem essa arte possa mudar ao longo dos tempos, a vontade de expressar o que lhes vai na alma vai muito além do que qualquer ferramenta que possam usar.
O que me leva a crer que os artistas - seja de que tipo forem (pintores, escritores, músicos, etc.) - ainda nos irão surpreender com o uso que irão fazer destas novas ferramentas que vão surgindo, como é o caso do ChatGPT (para escrita) e do DALL-E (para imagem).
Mas então se não são os artistas, quais são as profissões que vão efetivamente ser ameaçadas pela introdução da IA?
O estagiário com memória (quase) infinita
Na verdade, não vou cometer o mesmo “erro” da última newsletter. Eu não acho que há, no imediato, profissões que vão desaparecer com a introdução do ChatGPT. Ainda é cedo para isso. Mas há que admitir que há trabalhos que vão estremecer com o potencial que estas ferramentas trazem. E no essencial, acho que isso vai notar-se, para já, nos pequenos trabalhos rotineiros, aqueles que normalmente se entrega ao estagiário que ainda está a tentar perceber como funcionam as coisas. A diferença é que este “estagiário” tem memória (quase) infinita e já leu milhares de milhões de textos sobre todo o tipo de temáticas em várias línguas.
Portanto, quais são as áreas onde uma ferramenta como o ChatGPT pode efetivamente ajudar a aumentar a produtividade humana (e gradualmente, começar a eliminar a necessidade dos humanos fazerem certas tarefas chatas e rotineiras)?
Suporte ao cliente
Antes de enveredar pela vida de investigador de IA, eu trabalhava num call center a dar suporte de telecomunicações (linhas telefónicas de internet, na verdade). O que é certo é que, depois daquele primeiro passo um pouco mais difícil em que tinha de tentar perceber o problema que a pessoa estava a reportar, o trabalho acabava sempre por culminar comigo a dar a resposta lida diretamente de um guião, onde estavam bem tipificados os 5 ou 6 problemas mais comuns que eu, enquanto figura de suporte, iria encontrar em 99% das chamadas que atendia. E esse era um trabalho chato e rotineiro que eu, já naquela altura, sentia que deveria ser feito por uma máquina. Mas não havia máquinas que conseguissem processar o discurso de um humano que estava chateado porque não tinha internet (this was the 90’s after all). Agora já há. E para além de perceberem o que a pessoa diz, agora já conseguem compreender o problema e, se forem treinados especificamente para isso, conseguem dar a resposta certa de forma rápida e clara.
Sumarização/Análise de Documentos
Uma das coisas que tenho notado uma maior evolução no último ano, é a capacidade que novos modelos que vão aparecendo têm de processar o texto que lhes é dado e produzir um sumário bastante satisfatório. E se pensarem nas profissões em que há uma necessidade constante de análise de documentos, em que uma grande parte consiste em ler documentos e produzir sumários (como os advogados, assistentes ou até assessores), estes modelos de sumarização são o “estagiário” perfeito. Quer dizer, não é mesmo “perfeito” porque os modelos ainda não estão no ponto de se poder confiar totalmente e cegamente no output que produzem, mas um dia lá chegarão.
Veja-se a dura realidade em que 8 em cada 10 advogados estagiários chumbaram no exame de acesso à Ordem, mas o ChatGPT já consegue passar em exames de prestigiadas instituições de ensino de Direito nos EUA.
Traduções
Outra das áreas que tenho notado que tem evoluído rápida e favoravelmente é a da tradução de conteúdos. Quando o Google Translate surgiu algures ali na segunda metade da primeira década deste milénio, este era de facto fascinante, mas toda a gente sabia bem que tinha grandes limitações e que nem sempre as traduções eram as melhores. Os modelos mais recentes de tradução automática estão cada vez melhores e produzem conteúdos traduzidos com uma qualidade extraordinária. E mesmo nas situações em que não constituem traduções perfeitas, são uma primeira iteração perfeitamente adequada para ser depois processada por um tradutor humano que a põe no ponto.
Programação
Numa outra edição da newsletter, eu falei de como estes modelos de IA podem dar algum apoio em programação informática e desenvolvimento de sistemas de informação. Por exemplo, um programador pode pegar num problema complexo, pensar numa solução global igualmente complexa, dividi-la em problemas mais pequenos e bem definidos e aí, sim, dar esses problemas mais pequenos a uma IA que irá criar o código-fonte necessário para cumprir com esses requisitos bem definidos. Caberá depois ao programador humano orquestrar todos esses pequenos módulos num sistema bastante mais complexo e que seja capaz de resolver um problema global.
O que fica claro, em todas estas “previsões”, é que a introdução da inteligência artificial não vai substituir os humanos. O que vai acontecer é que aqueles humanos que não souberem adaptar-se a este novo tipo de ferramentas, vão ser “substituídos” pelos humanos que conseguem ver isto como uma oportunidade de aumentar a sua produtividade.
As novas profissões
Quem nos anos 90 acreditaria que dali a 20 anos iria existir uma profissão cujo único propósito é descobrir e aplicar as melhoras técnicas para manipular os resultados dos motores de pesquisa? E no entanto, hoje em dia, alguém dizer que é um SEO expert já é algo corriqueiro.
A capacidade dos humanos se adaptarem às novas realidades que lhes vão aparecendo é exatamente aquilo que nos destaca do resto dos seres deste planeta. E eu acredito que isso vai continuar a acontecer a este nível.
O surgimento de tecnologias de inteligência artificial que precisam de ser treinadas, ajustadas e principalmente “interpretadas”, vai fazer nascer um conjunto de novas profissões que, se calhar, neste momento nem sequer conseguimos idealizar. Mas há outras que já se consegue ver que aí virão:
Prompt Engineering - a necessidade que há de saber interagir com estes grandes modelos de linguagem, vai criar uma categoria de profissionais que serão especialistas em “esmifrar” conteúdos de qualidade saídos de ferramentas como o ChatGPT;
AI Security / Prompt Injection - assim como há aqueles que irão perceber como melhor interagir com modelos de IA, também irão surgir aqueles cujo trabalho é estudar as vulnerabilidades, perigos e limitações destas ferramentas;
AI philosopher / ethicist - e no meio disto tudo, será necessário também que haja quem explore os cenários do impacto que estas ferramentas terão na sociedade e que nos ajude a guiar na direção correta.
Que outras profissões acham que irão surgir nesta era de inteligência artificial?
Notícias Várias
Bing com 100 milhões de utilizadores ativos diários
Mesmo com as alucinações estranhas da encarnação do ChatGPT no Bing, com a introdução do Bing Chat, a Microsoft consegue celebrar um marco importante na sua quota do mercado de pesquisa, atingindo um décimo dos utilizadores activos diários do Google. Para além do Bing Chat, a Microsoft está também a utilizar atualizações do Edge, atualizações do Windows, e até mesmo avisos de pop-up para empurrar o seu motor de busca novo (e até impedir as pessoas de descarregar o Google Chrome). Mesmo assim, parece que a Microsoft ainda tem um longo caminho a percorrer se quiser competir com o monopólio do motor de busca do Google.
OpenAI cria API para motor do ChatGPT
A OpenAI decidiu disponibilizar o acesso ao motor que alimenta o ChatGPT (o gpt-3.5-turbo) através da sua API já existente. Isto, por si só, já seria muito interessante dado o avanço do gpt-3.5-turbo em relação ao gpt-3 (em termos de qualidade dos outputs), mas as novidades não ficam por aí. O preço do uso deste novo motor é 10 vezes menos do que o uso da versão anterior. Isto é claramente uma tentativa de criação de monopólio antes que os concorrentes consigam ter tempo de se instalar… e parece que é o acordo com a Microsoft (que trouxe milhares de milhões de dólares para a OpenAI) que está a ajudar a bancar esta iniciativa. Melhor para gente como eu, que já tratei de por o meu bot pessoal a interagir com o gpt-3.5-turbo. Isto aumentou exponencialmente a utilidade do bot para mim.
Geração de imagens a partir de atividade cerebral
Isto ainda é só um anúncio público por parte de uma equipa de investigação, o que significa que ainda tem de ser verificado, mas um conjunto de investigadores afirma que descobriram como criar imagens de alta resolução a partir da actividade cerebral humana utilizando modelos de stable diffusion (como o Midjourney). Estou um bocado céptico em relação a este anúncio, mas se realmente for como os investigadores afirmam, agora vamos poder finalmente ver como são os nossos pensamentos - SPOILER: provavelmente serão só gatos e pizza.
AI all the things
Esta corrida à inteligência artificial está a deixar todos doidos. Não param de chegar os anúncios do desenvolvimento de novos modelos. A Microsoft apresentou o Kosmos-1, uma IA que consegue resolver puzzles visuais, compreender a linguagem natural, e até passar nos testes visuais de QI (com 22-26% de precisão, mas quem está a contar?). Também Elon Musk, o homem mais ocupado do mundo da tecnologia, aparentemente decidiu que precisa de outro projecto e está agora a formar um laboratório de investigação para criar uma alternativa ao chatbot do OpenAI, ChatGPT. E para não ficar para trás (e dado que agora já ganhou tempo livre porque parece que decidiu abandonar o sonho de criar o Metaverse), Mark Zuckerberg, CEO do Facebook agora conhecido como Meta, anunciou a criação de uma equipa específica para explorar experiências com texto, imagens, vídeo, e experiências multimodais na tentativa de criar um novo grupo de produtos centrado nesta tecnologia da IA generativa. E numa área que eu não estava muito à espera, eis que a Força Aérea dos EUA decide anunciar que está também a trabalhar para ter caças autónomos a proteger os céus da América. O Departamento de Defesa Americano enfatiza que estes sistemas autónomos serão concebidos para apoiar os pilotos humanos, não para os substituir, mas depois também afirmam que, em missões mais simples, o cockpit pode ser trocado por um voo totalmente autónomo. Isto é um pouco assustador.
“Impressão nasal” em vez de chips
A empresa sul-coreana Petnow anunciou, no Congresso Mundial Móvel em Barcelona, uma nova aplicação móvel para identificar animais de estimação utilizando a singularidade do nariz de um cão ou gato para os identificar. Tal como os humanos no caso das suas impressões digitais, também os cães e os gatos têm as suas próprias impressões únicas do nariz, que permanecem inalteradas ao longo da vida. A aplicação poderia até ser utilizada para substituir o típico chip que é instalado nos animais e que é muito mais invasivo. O dono do animal regista uma imagem do rosto do seu animal de estimação na aplicação, que é depois utilizada para identificar o animal se este se perder. A empresa afirma que a taxa de precisão da sua aplicação baseada em IA é de 98,97%.
EMEL a seguir o exemplo contrário da Carris
A EMEL, a empresa municipal de mobilidade em Lisboa, lançou a EMEL Open Data, uma plataforma que fornece conjuntos de dados abertos que inclui a partilha de bicicletas, ciclovias, estacionamento, tráfego rodoviário, acesso pedonal, e estações de carregamento de automóveis. Os dados podem ser acedidos, utilizados e modificados livremente por qualquer pessoa interessada em melhorar o sistema de transportes de Lisboa. Esta iniciativa é de louvar e é claramente um passo na direção certa… e totalmente contrária à da Carris que insiste em cortar o acesso a quem só está a tentar usar os seus dados para melhorar o serviço prestado aos utentes dos transportes de Lisboa.
Recomendações de leituras
MIT Technology Review - Meet the AI expert who says we should stop using AI so much
Uma importante leitura de uma entrevista a uma especialista de inteligência artificial sobre a forma como a febre de colocar a IA em todo o lado e todas as coisas tem deixado para trás as discussões importantes sobre o impacto que o uso destas tecnologias terá a diversos níveis: saúde, assuntos sociais, policiamento, segurança, privacidade, etc.
Recomendações de podcasts
Big Technology - An AI Chatbot Debate
Um debate muito interessante sobre a guerra de chatbots que vemos agora entre ChatGPT e o Bard (da Google). É interessante ver como os dois intervenientes discordam em tanta coisa ao nível da qualidade e da aparência de real inteligência nestas tecnologias, mas depois ver como estão em absoluto acordo em relação ao medo que ambos sentem na forma como estas tecnologias podem ser perigosamente usadas.
Nota final
Mesmo depois de já terem feito mais de 100 aterragens dos seus rockets depois de irem ao Espaço e voltar, eu nunca deixo de ficar deslumbrado com o que a SpaceX conseguiu inovar no mundo da exploração espacial.
Vai haver uma altura em que isto será normal… mas ainda não é hoje.
Até à próxima!
António Lopes